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Galeria Luciana Brito

Regina Silveira

LB News
1939
Porto Alegre, Brasil
Vive e trabalha em São Paulo, Brasil

Os dois fogos

Marcio Doctors, 2002 PDF

Existe uma parábola judaica que gosto muito e que tem guiado meu pensamento nas questões estéticas. Esta parábola trata da forma como as escrituras divinas foram escritas. Ela nos revela que elas foram escritas com dois fogos: um fogo negro, que desenhou as letras que pensamos ler, e um fogo branco, que criou o espaço entre as letras que nos permite lê-las. A parábola continua dizendo que estamos atravessando um ciclo de sete mil anos em que sabemos ler o fogo negro e que, agora, estamos nos aproximando de um novo ciclo em que aprenderemos a ler o fogo branco.

 

A idéia de que a realidade humana é composta por pares: interior e exterior, cheio e vazio, objetivo e subjetivo, corpo e espírito, figura e fundo, presença e ausência, luz e sombra e muitos outros pares ainda, nos fornece um instrumento para perceber a trama do real que sabemos não se esgotar em uma visão unidirecional. Merleau-Ponty desmanchou a lógica de antagonismos implícita nestes pares, quando nos fez ver que eles não existem um apesar do outro, mas um graças ao outro. Este artifício da percepção fenomenológica garantiu um campo de passagem mais suave e uma abrangência mais generosa da apreensão da realidade, na medida em que as fronteiras entre as coisas deixaram de ser percebidas como absolutas -como já nos havia mostrado Heráclito-, para serem percebidas no seu fluxo, como campos de troca de intensidade de forças. Na cor verde, por exemplo, o azul cede lugar ao amarelo e vice-versa, dependendo da intensidade do tom de verde. Ambas as cores estão presentes no verde, mas elas se alternam ou se equilibram nas suas intensidades para constituírem as diferentes tonalidades possíveis do verde, deixando de ser a cor que são para se tornarem outra cor. Ou, ainda, podem passar para o seu pólo oposto, em que o azul pode passar ao verde e do verde ao amarelo. Cada um dos pólos dos pares sempre está contido no outro. Como na fita de moebius há uma continuidade entre o verso e o reverso.

 

O que me interessa na parábola dos dois fogos, para além do fato de acionar nossa consciência para a importância da interdependência dos pólos aparentemente opostos, é que ela introduz a idéia de que, mesmo assim, há a primazia de um campo sobre o outro. Hoje sabemos ler a partir do fogo negro, mas chegará o dia em que aprenderemos a ler o fogo branco. O que significa saber ler a partir do fogo branco? O que significa fazer essa torção e passar para “o outro lado”? Penso que não temos ainda condição de responder a esta pergunta, que, para mim, é da mesma ordem de saber o que há do outro lado dos buracos negros. Podemos especular e até inferir outras possibilidades de realidades, mas, certamente, teremos que ter outra estrutura mental e de percepção da realidade.

 

Grande parte do meu interesse pelas artes plásticas, reside no fato de que penso que, desde o Impressionismo até as experiências mais recentes da arte contemporânea, a arte tem se proposto a inquirir o fogo branco. A Renascença e a teoria geral da perspectiva são a tradução visual da capacidade do homem de ler a realidade a partir do fogo negro.  Com o Impressionismo e a sistemática demolição da representação naturalista clássica, iniciou-se um processo de deslocar o olhar de uma posição centralizadora para uma posição mais maleável (mais plástica) em que as artes visuais abriram mão de serem reprodução fiel da exterioridade. No lugar da verossimilhança, como garantia de verdade, buscou-se o verdadeiro, cuja expressão não se dava mais a partir de uma medida de precisão da aparência, mas de uma medida de precisão do que não estava necessariamente aparente. O mistério (a metafísica) deixou de ser encoberto pela realidade para ser transparência da realidade. Para mim, este movimento representa um deslocar-se em direção ao fogo branco.

 

Neste processo, Regina Silveira tem uma contribuição única. Como ela é dotada de uma inteligência absolutamente objetiva e precisa, ao invés de desestruturar a representação clássica de fora para dentro (como foi feito ao longo dos últimos 150 anos da história da arte e da conseqüente sucessão de “ismos”) ela propôs enfrentá-la de frente e desconstruí-la de dentro para fora. Em outras palavras, seu processo foi questionar a perspectiva a partir da suas próprias leis. Ela utilizou-se dessas leis para mostrar que nos seus limites - nas bordas da representação-, a perspectiva cria distorções (anamorfoses) que a afasta de uma reprodução fiel da exterioridade.  Esta estratégia da artista desmontou o mistério da perspectiva e o transformou em aparente; através da obra de Regina Silveira a perspectiva foi ferida pela própria aparência.

 

O que resultou deste processo de implosão? Um mundo estilhaçado repleto de vertigens. Isto não é uma metáfora. Podemos observar através do desenvolvimento de sua obra que a perspectiva exagerada leva a criar esta relação espacial em que o mundo parece desabar e fragmentar-se. Muitos de seus trabalhos são experiências radicais de perspectiva que nos mostram que, no seu limite, a perspectiva desfigura a realidade distorcendo as certezas. O mundo, antes, pleno de certezas, é-nos agora apresentado como um campo minado onde a maior presença é a ausência.

 

Regina, então, busca dar forma a esta ausência através da luz e da sombra. Esses dois elementos constituem a aparência do visível, mas não possuem densidade material -assim como as linhas da perspectiva-, só que, diferentemente delas, não são um construto mental, mas apreensão direta da realidade como aparição. A visão percebe a realidade externa não pelo jogo de linhas, mas pelo jogo de luz e sombra. O que a artista nos indica é que o que falta experimentar, ou melhor, re-experimentar é esta relação direta com o real em que o mundo se desenha aos nossos olhos pelas massas de luz e de sombra. Na realidade, o que Regina nos faz ver é que elas são as estruturas que nos permitem ver. Este dado nos afasta da necessidade de encontrar uma verdade (como queria a perspectiva central) e nos aproxima da experiência do verdadeiro. Se a perspectiva nos fornece um conceito de verdade, as luzes e as sombras nos permitem experimentar a visão da realidade como pulsão verdadeira da vida.

 

O “logos” que surge deste processo não é fruto da razão autoritária e centralizadora, mas da poética. E este é o ponto a partir do qual esta exposição se constituiu. Foram escolhidas obras que permitissem ao público conviver com o momento mais recente da artista, em que ela se utiliza de meios tecnológicos como veículo para preservar a mesma perplexidade que experimentamos diante das forças da natureza e que nos inquirem sobre o mistério do mundo. Imaginem a sensação de um por do sol e o momento em que somos tomados pela força de sua presença. O silêncio, o envolvimento e a experiência radical de descolamento da estrutura fragmentada de imediatismo do tempo e da ordem urbana da cena contemporânea. É este sentimento de maravilhamento que buscou-se conservar. Todos os trabalhos escolhidos para esta exposição foram guiados por esta percepção. Buscou-se, na dobra arte /tecnologia, que Regina domina com extrema delicadeza e apuro, privilegiar trabalhos que traduzissem a dimensão do poético, que nos remetessem ao momento do nascimento da filosofia, quando estas questões pulsavam intensamente.

 

A tônica de todas as obras apresentadas é a luz. Cada uma a seu modo.* LUNAR é um balé cósmico em que a bola se desloca na profundidade do espaço, imantando nosso olhar. É uma obra que nos faz perder a dimensão do plano e nos convida para um mergulho na profundidade do cosmos, criando momentos de concentração em nós mesmos.  PULSAR é uma simples caixinha de fósforos que realiza uma conexão lúdica entre o cotidiano mais banal e o deslumbramento de uma estrela de luz que, magicamente, escapa da caixinha. DOUBLE nos ilude, nos questionando sobre o limite entre a realidade material e a imaterial e entre a realidade real e virtual. É o único trabalho  que apresenta sombra  -que faz parte do repertório plástico de  Regina- e que nesta obra tem a função de conectar estas duas realidades do homem da atualidade. LUZ/ZUL interfere na arquitetura, banhando o espaço  com luz azul, anunciando na entrada a palavra LUZ , cuja projeção invertida (ZUL) pode ser lida no interior do prédio. LUZ/ZUL é uma obra que trata de tautologia. Ela se remete àquilo que é porque é. Este lugar é o lugar da convicção  e não da verdade. É o lugar da arte. Com esta obra Regina Silveira fecha metaforicamente o ciclo que nos referimos quando mencionamos os dois fogos. A palavra LUZ escrita com luz tem a força do que é igual a si mesmo e nos convida a entender a aparência da realidade  como superfície da  profundidade do real. Com LUZ/ZUL os dois fogos podem ser entendidos como estrutura do uno em que um é extensivo ao outro: o vazio pleno.

 

 

Marcio Doctors

 

 

* Todas as questões referentes aos trabalhos desta exposição, a história e o conceito da obra de Regina Silveira poderão ser melhor percebidas na entrevista  comentada deste catálogo.